Autor: Darci Garçon
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Se Erving Goffman, cientista social e escritor canadense, ainda vivesse e passasse pelo Brasil, nestes tempos, comprovaria com facilidade os conceitos que expôs em seu livro* editado nos anos 60, a respeito de desempenho de papéis.
Pelo que estamos assistindo – encenar, dramatizar, fantasiar ou maquiar a postura pessoal -passou a ser um comportamento absolutamente natural e aceitável. Uns fantasiam mais, outros menos, dependendo das circunstâncias ou do que esperam demonstrar ou fantasiar naquele momento.
Na vida pública chegamos ao apogeu. Temos visto posturas atrevidas por meio das quais os protagonistas mentem descaradamente e querem nos fazer acreditar em coisas inacreditáveis. Com certeza sabem que estão procedendo de maneira indigna, mas não estão minimamente preocupados com isto. Também não estão preocupados com a forma como serão interpretados evidenciando, explicitamente, o que Goffman, muito apropriadamente, chamou de “comportamento cínico”.
Em seu livro Goffman ensina que na encenação há um ator – a pessoa que desempenha um papel, não importa qual seja, procurando parecer aquilo que não é – e há a plateia, os interlocutores que acreditarão ou fingirão acreditar no que estão vendo e ouvindo.
Segundo ele, há atores que maquiam a sua postura de maneira treinada, portanto, pré-concebida. Dessa forma, sabem muito bem como querem ser vistos e expõem-se com total segurança e domínio de si próprios ainda que estejam mentindo descaradamente. Tais atores correm o risco de serem desmascarados pela realidade, mas isto não os assusta nem um pouquinho nem os inibe de serem persistentes nessa postura. Com certeza, crêem que os seus interlocutores acreditam na fachada que estão apresentando.
Encenando ou desempenhando determinado papel a serviço de seus interesses pessoais ou de seu grupo para iludir, sem se preocupar com eventual tropeço, esses atores têm certeza que todos estamos imbecilizados. Ou podem achar que estamos encantados com o seu desempenho. Do nosso lado, pode acontecer que estejamos acomodados, sejamos tolerantes e resignados, acreditando docilmente ou fingindo acreditar na fachada que apresentam. A realidade é que, para essas pessoas, transparência torna-se um atributo fora de moda e foi substituida pela arte de mentir ou pelo cinismo.
O cinismo nas empresas
O comportamento de fantasiar – ou de dramatizar – é visto quando o protagonista está exposto à mídia ou a uma plateia. E não se trata de “atributo” exclusivo dos nossos representantes nas diferentes esferas da estrutura política. É comum também na vida social e no mundo corporativo e este mundo, o corporativo, é o objeto principal deste artigo.
O ambiente de trabalho é palco bem apropriado para os seres humanos se exporem desempenhando papéis, encenarem, quererem parecer o que não são, enfim, criarem uma imagem que não é a verdadeira com a intenção de demonstrarem autoridade, poder, status, riqueza, inteligência, competência, domínio ou seja lá o que for.
Ao longo de nossa carreira entrevistando candidatos a emprego, temos observado, com frequência, esse comportamento deteriorado que é percebido rapidamente e o associamos à falta de transparência, um pré-requisito de fundamental importância, que pode levar a pique a empatia e a confiabilidade, duas qualidades indispensáveis em qualquer processo de seleção.
Vamos a um exemplo no âmbito corporativo. Há casos de profissionais, contratados por empresas que necessitavam de mudanças rápidas e radicais para tirá-las do atoleiro. Eles chegavam nas empresas como os salvadores da pátria. Começavam “arrumando a casa”, ou seja, demitindo os que podiam lhes oferecer algum tipo de resistência e massacrando os que permaneciam para que ficasse claro quem é que tinha poder. Para ajudar no processo de salvamento da organização, traziam profissionais de sua confiança, submissos, que os ajudavam nesse desafio. Esse sufoco durava por volta de dois anos e, nesse período, as pessoas assistiam shows de egocentrismo, arrogância, autoritarismo e belicosidade. No final desse prazo, o salvador da pátria era dispensado, deixando a empresa traumatizada e em situação pior do que estava quando da sua chegada.
Outro exemplo, agora voltando à vida pública, para lembrar de heróis nacionais, vedetes, aqueles que se auto-glorificam. No seu discurso se enaltecem, atribuindo a si próprios mudanças fantásticas, decisões corajosas que nunca foram tomadas antes e ousadia diante dos problemas, prometendo soluções que podem e que não podem proporcionar. Tudo de bom é feito por eles, tudo de ruim que está acontecendo, ou acontecerá, é de responsabilidade dos outros. Quase Messias. Gostam de ser bajulados e venerados, odeiam críticas, são exclusivistas e adoram som de trombetas quando se apresentam. Narcisistas, manipuladores, cínicos por excelência.
Michel Debrum** parece ser a fonte de inspiração destes cidadãos e de seus seguidores quando assegura que “o herói também fornece a certeza. Tendo o domínio da segurança, ele ajuda a vencer a angústia, a incerteza dos períodos difíceis e de mudanças. Atrás de seu guia, o povo se sente seguro porque o herói não pode errar. Ele sempre enxerga mais longe, mais claro e mais certo”, apregoa o sociólogo.
Diante desse quadro pavoroso no mundo corporativo, público e social – o melhor que podemos fazer para ver o outro lado do comportamento humano – é confrontar esse tipo de postura com um outro modelo, o exposto por Jim Collins***, que deveria servir de exemplo para os atores nos diferentes palcos.
Em suas pesquisas, Collins identificou onze empresas que tiveram sucesso durante vários anos seguidos. Na pesquisa que realizou descobriu uma característica comum nos principais dirigentes dessas organizações: eram gestores que tinham toda a sua preocupação voltada para o sucesso das empresas e não para si próprios, para engordar seu bônus, melhorar o seu status ou aumentar o seu prestígio.
Esses líderes, nas raras ocasiões em que eram entrevistados, não falavam de si próprios e atribuíam o sucesso das suas corporações aos seus colaboradores. Segundo Collins, esses líderes nunca sonharam em se tornar heróis universais: “Não aspiravam serem colocados num pedestal, nem se tornarem ícones inigualáveis. Consideravam-se pessoas comuns, que produziam resultados extraordinários em silêncio”, relata.
Nos tempos atuais, na vida pública, os fatos nos dizem que devemos acreditar em pouquíssimos atores. Na vida corporativa – especialmente na condução de processos de seleção – é conveniente manter afinada a intuição quando vemos e ouvimos as pessoas, não importa em que palco. É preciso interpretar, sem ser injusto, o que há por trás da fachada e perceber evidências de cinismo. E isto pode apresentar alguma dificuldade quando o protagonista apresentar elevado grau de segurança.
Por outro lado, a convivência com o cínico no cotidiano, como par ou subordinado, é um transtorno pois tal personalidade equipara-se ao psicopata corporativo.
Finalizando, convém registrar uma condição importante: o comportamento contrário ao chamado de “cínico” é o comportamento “sincero”. As pessoas que desempenham naturalmente esta modalidade de papel são transparentes, confiáveis e merecem a nossa consideração. Essas são as que conseguem prestígio e reputação junto a comunidade em que vivem e são as que devem fazer parte do nosso círculo de relacionamento.
* A representação do eu na vida cotidiana. Editora Vozes, 1985.
** O fato político. Editora FGV, 1962
*** Empresas feitas para vencer. Editora HSM, 2013